terça-feira, 19 de agosto de 2014

               DO SERINGAL AO TOPO DO MUNDO
                                                      Francimar Moreira


Filha de pai seringueiro, ela nasceu na década de 50, do século XX, no Estado do Acre. Morou em palafita no Seringal Bagaço, foi infectada por resíduos de metais pesados – criminosamente lançados em cursos de águas de sua região –, permaneceu analfabeta até os 15 anos, por absoluta falta de oportunidade de receber instruções, foi, ainda, acometida de graves enfermidades, inclusive, teria sido desenganada pelos médicos, e, nunca mais gozou saúde plena.

A contaminação, que certamente fragilizou-lhe o sistema imunológico, tornou-a vulnerável a inúmeras doenças: três hepatites, cinco malárias, leishmanioses e várias outras de menor gravidade, contra as quais resistiu e lutou heroicamente. Mas sua batalha foi além!... Afinal, havia as dificuldades impostas pela falta de recursos materiais!... Milagrosamente saiu-se vencedora, constituindo-se, portanto, em espetacular caso de superação pessoal registrado entre nós. 

Trata-se, sem dúvida, de uma predestinada, dotada de grande coragem moral, de um enorme desejo e esperança de ver a humanidade alçar-se a outro estágio civilizatório, de mudar o mundo!...  Sobretudo, nutre uma inabalável fé em Deus que, regada pela chama do amor a fortalece. Aliás, para quem conhece a saga dessa incansável idealista, por mais incrédulo que seja, fica difícil não desconfiar da existência de uma mão invisível, um poder imensurável a conspirar a favor dela.

Se não bastasse o seu histórico de superação, a firmeza com que defende as suas convicções, e a admirável bagagem intelectual, também encanta o mundo sua determinação de lutar pelas causas que considera vitais para o bem-estar da humanidade e de todas as espécies vivas do planeta Terra. Sobre as doenças que sofreu e a fé inabalável que revela, é comum se ouvir pessoas dizendo: “Quase chorei de emoção, ao ouvir a história de vida da acreana (...)!”.      

Seu pai, um retirante nordestino, natural do Estado do Ceará, que migrou para a região Amazônica, fugindo da seca e atraído pelo látex – emulsão que se constitui na principal matéria prima para a fabricação da borracha –, possuía uma habilidade que o destacava dos demais seringueiros: a facilidade de lidar com os números e executar alguns cálculos matemáticos.

A vocação do genitor para a lógica numérica e o prazer em poder ajudar a seus companheiros, faziam sua casa ser muito visitada aos domingos: eram os colegas de profissão que iam pedir-lhe para calcular o valor do látex que haviam produzido na semana anterior. “Afinal, não devemos ficar à mercê de cálculos feitos somente pelos compradores” – Diziam os amigos, repletos de gratidão.    

Do pai, ela herdou a facilidade de raciocinar guiada pela lógica, o pendor pelos números, o sentimento de justiça e o desejo de superar-se e alçar grandes vôos. Contudo, somente aos 16 anos de idade lhe surgiu a oportunidade de ser alfabetizada, por meio do MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado pelo regime militar, que governou o Brasil de 1964 a 1985.  

O contato com as letras e a ciência, não somente lhe rendeu nova visão de mundo, como lhe revelou a dimensão dos abissais desníveis sociais que grassa entre os povos do mundo inteiro, o que a inspirou reflexões sobre os motivos e as consequências de tão injusta e absurda situação. Daí, a envolver-se em movimentos diversos, e iniciar uma cruzada contra a degradação ambiental e social, produzidas pelos homens, foi somente uma questão de tempo e oportunidade.  
Ao certificar-se de que a preservação ambiental e fenômenos climáticos são indispensáveis à sobrevivência do homem e as demais espécies vivas existentes no planeta Terra, fez da defesa do meio ambiente, da natureza e da vida o foco principal de sua existência. A partir de então, bastou se firmar, perante as organizações mundiais que defendem as causas ambientais, a convicção de que suas idéias tinham vigorosa consistência, para que sua voz ganhasse eco planetário.

Foi ao lado do mais autêntico defensor da natureza e da vida, Chico Mendes, que seus ideais em defesa do meio ambiente e do ecossistema se consolidaram. E, à medida que o conhecimento abria-lhe o horizonte para compreender as injustiças sociais em sua plenitude, afloravam, na consciência lúcida da futura líder de uma causa universal e justa, idéias de como demolir paradigmas enraizados há séculos ou milênios, por meio de uma sustentável organização em REDE.  

Convencida de que as diretrizes que definem as políticas públicas em relação ao meio ambiente, o ecossistema e a vida em nosso planeta, têm de serem traçadas no embate político e no confronto das ideias, logo se transformou em uma autêntica ativista ambiental e política, marcada, sim, por uma postura ética, decente e calma, porém, por um forte embasamento de caráter filosófico e social, que logo a fez admirada muito além das fronteiras do Brasil.   

Eleita vereadora, em 1988, pelo município do Rio Branco, capital do Estado do Acre, causou espanto aos seus pares na Câmara Municipal ao não aceitar algumas benesses que o cargo lhe assegurava. Atitudes como essa, absolutamente desconectada da cultura que prevalece entre nós, e uma atuação brilhante como defensora das causas coletivas, fizeram-na, dois anos depois, a deputada estadual mais bem votada de seu Estado.    

Quatro anos mais tarde, desembarcou em Brasília; já como senadora eleita e a pessoa mais nova do Brasil a ocupar a senatoria; certamente escolhida por suas virtudes e ideais. Nessa ocasião demonstrou sua personalidade e muita firmeza de caráter, ao repreender, com absoluta altivez, a um jornalista desprovido de bom senso que tentou, de forma desprezível, desdenhar de seu mandato e dela própria, seguramente subestimando sua estatura intelectual e moral.    

Já reconhecida mundialmente, como legítima e dedicada defensora das causas ambientais e do ecossistema, foi convidada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a assumir o Ministério do Meio Ambiente. Afastou-se, então, do Senado, onde já exercia o segundo mandato, e assumiu a delicada e conflituosa pasta. Embora não tivesse experiência administrativa, saiu-se admiravelmente bem em sua nova e delicada empreitada.   

Como soe acontecer, entre ela e o Presidente da República, havia a chefe do Gabinete Civil da Presidência, a quem devia, uma vez ou outra, dar satisfação. No cargo, ostentando “status” de ministra, estava uma mulher considerada uma “gerentona competente e dura”, e com poderes quase absolutos, assegurados pelo mandatário maior de seu País. As trombadas foram inevitáveis, até quando decidiu que não devia mais ficar e pediu para sair.  

Retomou, então, o seu posto no Senado, desfiliou-se do partido que estava no poder e pelo qual havia sido eleita senadora, e logo se filiou a outra agremiação partidária cuja bandeira principal era as causas ambientais e ecológicas. Pouco tempo depois foi lançada candidata a Presidente da República pelo Partido Verde. A surpresa foi a obtenção de quase vinte milhões de votos, por um partido pequeno e, ainda desconhecido da maioria dos brasileiros.   

Embora sem mandato, continuou a receber convites para proferir palestras nos mais diversos países e continentes. A abordagem principal sempre foram temas ligados às questões ambientais e ecológicas, porém, em reconhecimento à sua determinação e extraordinário histórico de superação, costumam convidar-lhe para abrilhantar encontros, seminários, e até festejados eventos esportivos de grande magnitude, em companhia de expressivas autoridades mundiais.      

Foi na abertura das Olimpíadas de verão de Londres, em 2012, em que estavam presentes vários chefes de Estado – fato que, naquele instante, transformou o lugar em topo do mundo –, que ela, ao Integrar o seleto grupo de celebridades mundiais que conduzia a bandeira com os anéis Olímpicos, elevou-se, de forma glamourosa, à condição de grande líder, o que causou encanto aos seus admiradores e, certamente, irritação a algum desafeto.

Encantou aos seus quase vinte milhões de eleitores, no Brasil, e aos muitos milhões de simpatizantes, no mundo inteiro. Porém, irritou sobremaneira a chefe de Estado com a qual se atritou, quando ambas eram ministras. Ao bater os olhos no grupo que conduzia a flâmula das olimpíadas, a ex-colega, transformada em desafeta, contraiu o cenho e, após olhar fixo e atentamente, indagou a um assessor que estava ao seu lado: “Será que aquela mestiça é a..., ou eu estou delirando?!...”.  

 – Não, Excelência, não há nenhum delírio. Aquela a quem a Senhora chamou de mestiça, é, na verdade, Maria Osmarina Marina da Silva Vaz de Lima, a ex-enferma, ex-analfabeta, ex-doméstica, ex-vereadora, ex-deputada, ex-senadora, ex-ministra, ex-candidata a Presidente e, segundo dizem, futura Presidente da República Federativa do Brasil – proclamou o assessor presidencial.

Irritada, a Chefona do Estado brasileiro proclamou:
– Isso é uma desfeita à minha autoridade e à minha pessoa. Vou protestar junto ao Comitê Olímpico Internacional!... – e, chamando à sua presença o representante da diplomacia brasileira em Londres, determinou que o protesto fosse formulado naquele mesmo dia.

Ao saber da irritação que a sua presença causou à ex-colega e chefe do governo brasileiro, a guerreira das causas ambientais, do ecossistema, da paz e da vida simplesmente esboçou um leve e enigmático sorriso e, parecendo desejar extrair, do horizonte infinito ou do nada, explicações para as terríveis contradições humanas, simplesmente cravou-lhe um longo, abstrato e suplicante olhar.

                                                              
Imperatriz/Ma. 08 de maio de 2014.

     

Nenhum comentário:

Postar um comentário