A CERTIFICAÇÃO EXTRACURRICULAR
Francimar Moreira
De vez em quando estouram, por este Brasil afora,
denúncias de imperícias envolvendo as mais diversas áreas profissionais,
principalmente engenharia e medicina. Da necessidade de haver um melhor preparo
– tanto em nível técnico, quanto de conhecimento científico – nas diversas
áreas de prestação de serviços, a maioria de nós, somente
nos damos conta quando estão sendo denunciadas, em âmbito nacional, tragédias
de grandes dimensões.
Diante dos excepcionais
avanços tecnológicos e científicos que nos apresentam constantemente os
cientistas e pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento, parece evidente
e crescente a necessidade de haver, cada vez mais,
profissionais em níveis de excelência. Além do mais, deve ser delimitado um
nível mínimo de conhecimento e habilidades para que alguém possa exercer
o seu ofício. Até porque a enorme responsabilidade a que estão submetidos
alguns profissionais é tamanha que requer, além de aptidão, absoluta
autoconfiança.
É natural que o progresso tecnológico e científico que
temos acumulado, aliado às conquistas no campo da legislação, imponha a
necessidade de que – até para assegurar legitimidade funcional a eventuais acusados
– cada profissional tenha uma certificação extracurricular. Neste caso, o exame
e aprovação do profissional seriam da competência de uma Instituição altamente
qualificada e moralmente conceituada, em cujas decisões não vicejassem o
apadrinhamento e o tráfico de influência. Essa necessidade tem se acentuado nos
últimos anos, visto que, estão sempre surgindo novas leis que asseguram
direitos e atribuem deveres nas relações de negócios e serviços.
E não estou defendendo algo inusitado! Tanto é verdade
que já existe a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que impõe aos graduados em
direito a aprovação no chamado “Exame de Ordem”, como requisito prévio ao
exercício da profissão de advogado. Certamente,
também não estou pretendendo que se institua algo parecido com a OAB, pois, em
rigor, essa Entidade é, de fato, uma organização
classista, e não condiz com os princípios da legitimidade, da justiça e da equidade
conferir-lhe a prerrogativa de selecionar os que devem exercer a advocacia.
Ora, um erro de
cálculo de um engenheiro pode causar uma tragédia de enormes proporções; é só
pensar num edifício onde residam ou trabalhem milhares de pessoas. Um equívoco
de um médico pode custar uma preciosa vida e gerar terríveis consequências. Por
isso mesmo, as responsabilidades profissionais de engenheiros e médicos submetem
esses profissionais a uma permanente pressão da expectativa de trabalhadores,
futuros usuários e clientes, em torno dos limites e do alcance de suas
competências.
Ademais, todos os ofícios exigem, de quem tem a
pretensão de exercê-los, competência, desenvoltura e autoconfiança compatíveis
com o grau de responsabilidade próprio de cada um. Logo, evidencia-se
incoerente a exigência de avaliação exclusivamente para o operador do direito
e, pior, executada por uma entidade da própria categoria. Deveria, sim, ser
obrigatória para todas as categorias profissionais e realizadas por um órgão
independente das instituições de ensino e das corporações classistas.
Ah, mas a Constituição Federal privilegiou os
advogados, atribuindo-lhes a condição de categoria especial!... Então é aí que reside
e está sendo regada a raiz da contradição! Precisamos, pois, mudar a nossa Constituição.
Aliás, há anos defendo a convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva, pois
não me parece ser de todo um despautério comparar o zelo que políticos
carreiristas dedicariam à edificação de um Código de Leis, especialmente da
dimensão de uma Carta Magna, com o cuidado que teriam as raposas na vedação de um
galinheiro, cuja construção lhes viesse a ser confiada.
Aliás, na Constituição está expresso: “É livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer”. É estranho,
portanto, que se permita que normas constitucionais sejam violadas com o exclusivo
escopo de permitir que uma entidade de classe certifique quem pode
ostentar o título de advogado e exercer o seu trabalho.
É, ainda, profundamente injusto o fato de o operador
do direito ser obrigado a integrar a “Ordem”, submetendo-se a um exame caro e
contestado por milhares de bacharéis e mesmo por advogados. E, pior, tendo de
pagar, também, uma cara anuidade vitalícia, quando na
própria Carta Magna também está expresso: “Ninguém poderá ser compelido
a associar-se ou a permanecer associado”.
Dessa forma, a Constituição do Brasil está
sendo triplamente agredida: primeiro, quando se obsta o trabalho profissional;
segundo, quando se impõe a uma avaliação extracurricular; e terceiro, quando se
obriga a se inscrever e permanecer inscrito na Ordem!... Argumentos em defesa
da tolerância com outros ofícios e do privilégio à Ordem dos Advogados têm
origem em falsas premissas e não podem encontrar respaldo no campo da
racionalidade.
Certamente, não é o que pensam alguns que,
uma vez aprovados no “Exame de Ordem”, fazem da dificuldade para enfrentá-lo – e
do fato de terem sido, por alguma razão, vencedores – motivo de orgulho
intelectual e moral. Esses, guiados por seus próprios padrões, vão jactar-se e
defender a tal avaliação a vida inteira. E Freud, certamente, diria que isso
tem tudo a ver com a fragilidade e as contradições humanas, resultantes de um
atávico condicionamento dos tempos das cavernas.
A atribuição de avaliar o aprendizado e promover a certificação
extracurricular dos aprovados tem de ser tarefa da República Federativa do
Brasil, através do Ministério da Educação ou, quem sabe, de um “Conselho
Superior de Habilitação Extracurricular”, após promulgação de lei pertinente ao
assunto. Delegar a uma ou a todas as categorias profissionais o direito de
estabelecer, de per si, os critérios
da própria certificação seria, no mínimo, defender a balbúrdia normativa e suas
nefastas consequências. Aliás, o correto seria avaliar os estudantes ao final
de cada etapa do ensino – primeiro, segundo, e terceiro grau – e só passar para
a fase seguinte, ou ser habilitado em algum ofício, aqueles devidamente aprovados.
Sabe-se que a OAB tem sido alvo de muitas críticas e
reclamações; acusam-na de cobrar taxas exorbitantes, tanto na inscrição para o
Exame, quanto na anuidade do advogado. E mais: que representaria interesse
corporativo e que arrecadaria mais de CEM MILHÕES DE REAIS por mês, com
inscrições e taxas. Sabe-se, a propósito, que todo Ordenamento Jurídico visa a
disciplinar a vida em sociedade de forma que não impere a lei do mais forte...
É, portanto, paradoxal, que a OAB tenha se transformado – na visão de estudantes
e bacharéis em direito – em um temível e constrangedor monstrengo!
Ora, se
legítimo é o que está em conformidade com a razão e a natureza dos fatos e das coisas;
se justo é o que se processa, conforme a moral e o princípio isonômico, então
admitir que apenas uma categoria profissional careça de certificação extracurricular para exercer o seu ofício constitui,
de fato, uma inversão dos princípios que sustentam os conceitos de
legitimidade, justiça e igualdade. E, mais ainda, significa estar em flagrante discordância
com tudo o que inspirou a libertadora revolução francesa – notadamente os
ideais iluministas.
A OAB é muito importante no contexto sociojurídico
brasileiro, porém, como instrumento de organização de
uma classe e sua legítima mobilizadora a uma permanente vigilância, a fim de
que prevaleçam neste País, os atos que se processem dentro dos parâmetros de seu
ordenamento jurídico, e não como detentora da prerrogativa de certificar os
profissionais do direito. Disseram que não se deve brigar com os problemas. Deve-se
brigar, sim! Sobretudo, quando se interpõem em nossas vidas, como empecilhos à
realização de nossas justas aspirações.
Do acima proclamado, infere-se que os obstáculos devem
ser firmemente enfrentados e, com a força da coragem moral, demolidos. Assim
sendo, a prerrogativa que detém a Ordem dos Advogados, bem como a omissão ou desleixo do Estado Brasileiro em
relação às demais categorias profissionais, encaixam-se, deveras, no rol do que
deve ser combatido de forma sistemática e com a mais absoluta firmeza.
E não se tenha dúvida:
assim como a ausência de virtudes cria o ambiente psicossocial propício para a
proliferação da desordem e ilícitos, a presença delas faz florescer a profícua lucidez
e gestos sublimes. Logo, no dia em que, movido à consciência e guiado pela razão,
o povo eleger uma maioria de deputados e senadores dotados das virtudes
necessárias para honrar o mandato, haveremos de ver triunfar a coerência e serem
erradicados, do conjunto de normas deste País, vieses absolutamente
contraditórios.
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